quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Vencendo o alemão com amor

Minha mãe, ah! Minha mãe... 92 anos e 5 meses.

Já presentes os sinais da idade avançada, a memória bastante comprometida. Os filhos dos filhos de sobrinhos ela já tem dificuldade de lembrar, às vezes lembra, às vezes diz “Fulano, quem é mesmo?” ou então “Fulano é filho de quem?”.

A noção de tempo começa a ficar confusa, às vezes pede para que eu a leve na “Vila” porque ela quer visitar as amigas dela, de quando ela devia ter por volta de 30 anos. Explico para ela que as amigas não devem morar mais lá, que pela idade delas talvez já tenham até falecido, ela então fala ”Mas se elas já morreram, a mãe delas, o pai delas ainda deve morar lá”. A lógica inexiste.

Algumas características ela não perdeu: a teimosia, a dominação, mas também a meiguice, o carinho, o ser prestativa e principalmente a vaidade, é demais vaidosa. Pedir para que coloque a fralda é gastar saliva a toa “Imagina, há quanto tempo eu não uso isto. Porque tenho que usar de novo?” “Pra que usar fraldas, eu não sou criança”. Só que se ela não usar a fralda para dormir é sinal de problema na manhã seguinte. Mas para ela está tudo bem, quando lhe mostramos que a fralda está molhada e por este motivo ela tem que usar todas as noites, ela fala: ”Meu Deus, como isto foi acontecer, nunca aconteceu antes, que horror”.

Como ela é muito vaidosa e às vezes tenta esconder os imprevistos que acontecem, achei que se eu falasse Modess em lugar de fralda talvez ela aceitasse melhor. Dito e feito, todas as noites falo para ela (e se ela está na casa dela, telefono e falo): “Mãe, coloca o Modess quando for dormir, porque quando a gente vai ficando mais velha às vezes não percebe que quer ir ao banheiro fazer xixi...” ou então “Mãe, a Sra. Já colocou o Modess, eu vou colocar o meu”. Falando assim ela coloca a fralda sem o menor problema.

Todas as noites aqui em casa ela pede para que eu telefone para meu irmão porque ele está sozinho, porque não gosta de dormir sozinho, porque fica com pena de deixá-lo sozinho e que é para eu falar para ele vir dormir na minha casa. Ela acaba de falar eu respondo, explico, digo que ele está com a mulher dele, mas como ela esquece em seguida, pergunta de novo, de novo, de novo... A mesma coisa acontece quando ela está na casa dela com meu irmão “Cadê sua irmã?” “Telefona para sua irmã” “Sua irmã está sozinha, fala para ela vir morar aqui comigo”. Da mesma forma esquece quando meu irmão responde e pergunta tudo de novo, e de novo...

Mas ela ainda quer fazer as coisas, me ensinar como cozinhar, cuidar das plantas, fazer crochê – mesmo que os pontos quase nunca se encontrem, quando o biquinho do pano de prato fica com vários pontos diferentes, fica lindo, maravilhoso o crochê que ela faz.

Meu irmão e eu dividimos os cuidados para com ela, que fica alguns dias aqui em casa e alguns dias com meu irmão na casa dela. Hoje me emocionei com ela quando a levei de volta para a casa dela. Ao me despedir dela para voltar para a minha casa, nos beijamos e ela disse: “Filha, desculpe alguma coisa e obrigada por tudo”.

Meu Deus... desculpar o que, por que, do que? Obrigada por quê? Eu só tenho que agradecer por tudo que ela e meu pai fizeram por nós: pelas noites não dormidas; pelos cuidados quando estivemos doentes; pelas horas extras de trabalho e pelos bolos, docinhos e salgadinhos feitos para poderem nos propiciar estudos em Escolas melhores (Hoje um Engenheiro e uma Psicóloga); pelo tempo dedicado a encaparmos, nós quatro juntos, o material escolar no início do ano; pelo tempo que dedicavam a nos transmitir bons modos, boa conduta moral. No tempo em que ir do bairro da Moóca para o bairro de Pinheiros era uma viagem, tinha que pegar 2 conduções, atravessar Rua Direita, Viaduto do Chá, e eles ainda tinham que, além de carregar as bolsas, nos carregar no colo, pois o sono vinha e acabávamos pegando no sono dentro do ônibus. Mas este era o nosso passeio dos finais de semana, viajarmos do bairro da Moóca para o bairro de Pinheiros para passar o final de semana. Como a gente era feliz e com tão pouca coisa.

Acho que eu é que tenho que pedir desculpas e dizer obrigada.

Temos muito que aprender com os idosos. No meio do esquecimento, da falta de memória, existe uma história de vida, uma história de amor. Temos que aprender a ler este livro da vida, a respeitar todos os pontos, virgulas, exclamações, interrogações, das frases contidas neste livro. Temos que aprender a ler e respeitar este livro escrito pelos idosos.

 Márcia Inês Feitosa Raymundo Liwschitz                                                                                                                  (Com muito orgulho)


Esse texto é de uma amiga. Amiga de longa data e de profunda amizade. Ele retrata a situação da mãe dela, da minha mãe e de tantos outros idosos que com o passar dos anos sofrem o processo de envelhecimento. Se isso é obra do alemão (Alzheimer), não sabemos, mas sem dúvida é um desafio à nossa impotência.


O texto é da Márcia, mas poderia ser seu ou de qualquer outra pessoa com sensibilidade para perceber e respeitar as limitações impostas pelo tempo, e reagir com paciência, paciência e amor, amor e mais amor.



Lutando com o alemão


Agradeço a doutissima.com.br pela imagem cedida